quinta-feira, 9 de junho de 2016

ARTIGO - Uma possível autoversão da malcriação artística do grupo Rosa dos Ventos

Foto de Adernil de Souza
O Rosa dos Ventos é um grupo de circo e teatro que escolheu as ruas, praças e outros espaços alternativos para atuar. Nosso processo artístico de pesquisa e criação acontece concomitante ao trabalho administrativo, produção e circulação dos nossos espetáculos e está baseado em nossas experiências individuais e coletiva como grupo em 15 anos de existência. Definimos nosso trabalho artístico como popular. Se a definição desse termo não é única é por isso ainda mais adequada para definir o que fazemos.  Levamos uma linguagem que transita no humor rasgado com improviso livre de artistas cômicos que encenam tratando diretamente com o público na rua. A linguagem é identificada como própria, mas não pode ainda ser definida e sim listada com características autênticas que marcam nossos trabalhos. O grupo não desenvolveu um modelo para a criação artística e nem se baseia em referências clássicas.

Cada criação de espetáculo é vivida de acordo com as expectativas, pesquisas e influência das experiências de cada momento, presentes em cada integrante. Buscamos representatividades individuais num processo que acontece polifônico. Reconhecemos alguns avanços técnico-artísticos em nossos espetáculos e pensar em uma nova criação coloca a necessidade de tempo para aprendizagem no processo de ensaio, que por isso é lento, podendo variar de dois a cinco anos para a experimentação sair da sala de ensaio e ser apresentado para o público. Nossos espetáculos, após estreia, seguem sempre em transformação constante. A rua, o público, os amigos são referências fundamentais nesse processo, quando a criação é avaliada e os acertos mantidos, algumas coisas retiradas e outras experimentadas em outros contextos e tempo de cena.

Algo marcante em nossas apresentações, em todos os espetáculos, é o que chamamos de “esquenta” (prévia, aquecimento – nos momentos que precedem os espetáculos), um processo que surgiu no cotidiano do grupo e que é marcado pela estimulação de brincadeiras, tiração de sarro, num jogo que acontece entre nós e se expande para o público. Percebemos nessas brincadeiras uma simpatia que foi ganhando função nos espetáculos. Hoje o esquenta é uma necessidade; é o momento em que conhecemos as pessoas, suas histórias, histórias e particularidades do lugar; é o momento em que abrimos a roda atraindo a atenção dos passantes e fazendo montagem de cenário, som, troca de roupas, aquecimento corporal, maquiagem, tudo no local do espetáculo com comunicação direta com as pessoas que se aproximam.

Para explicar melhor como o esquenta funciona, podemos dividi-lo em quatro momentos: o de chegada e montagem, o de troca de roupa e aquecimento corporal, o de passagem de som e, finalmente, o momento de maquiagem. O esquenta tem níveis de intensidade que, geralmente, aumenta na medida em que o início do espetáculo se aproxima. Muitas vezes o esquenta chega a um nível tão alto de comunicação que se confunde com o início do espetáculo. O esquenta é a maneira de ganhar a atenção das pessoas, de facilitar a comunicação cômica e de provocar o público para se interessar pelo grupo e pela arte que será apresentada.
Foto de Talita Galindo
Chegamos ao local do espetáculo quase sempre três horas antes do seu início. Logo fazemos estudo das melhores condições de apresentação, definindo local para a montagem de cenário e disposição e conforto do público. Esses acertos já são motivo de muitas conversa e brincadeiras, que a partir desse instante ficam ainda mais intensas. A cada momento um integrante do grupo pode estar no foco, virar motivo de piadas, tudo pode avançar para um nível de exposição de intimidades que dão conta do cocô de um, dos atrasos de outro, da enrolação de trabalho, da idade que chega, de histórias engraças acontecidas. Nessa relação de permissividade procuramos envolver um número cada vez maior de pessoas. Muitos curiosos que chegam pra saber o que vai acontecer acabam permanecendo até o final do espetáculo, e ficam porque entram nas conversas, ri de um, ri de outro, faz e vira piada, dá liberdade para ser zoado e depois interage no espetáculo. Certa vez um amigo disse que esse ambiente que criamos para o espetáculo parece o de um bando de pedreiros conversando e brincando.
Quando trocamos de roupa e iniciamos alongamento e aquecimento de corpo e voz, as pessoas continuam se aproximando e a comunicação não para:

"- O espetáculo é uma porcaria! Mas quem não estiver fazendo nada, vale a pena!

Essas brincadeiras aguçam a curiosidade e os chamados “figuras” logo aparecem na roda com suas histórias e vontade de brincar. Muitos olham tímidos, de longe, e mesmo assim nos aproximamos para conversar. Assim se descobre o nome de um, apelido de outro, histórias do local – elementos que ajudarão na condução do espetáculo. Se uma história chama a atenção, é muito engraçada, logo pode virar história da roda toda. A rua é para nós um ouro e em nossos trabalhos procuramos amarrar tudo o que dela vem numa dramaturgia carregada de improvisos que podem ou não ter êxito, e viva o erro!

Meia hora antes do início do espetáculo é hora de passar o som e vozes. Então, palhaço Nicochina toca alguma música, ligamos nossos microfones, e assim o raio de comunicação é ampliado. Nesse momento o jogo fica mais específico, sendo que cada espetáculo tem um motivo diferente, uma ou mais piadas chaves; argumentos diferentes do espetáculo são colocados para o público tratando de personagens, cenas e técnicas que virão, numa tentativa de apreender as pessoas pela curiosidade, fazer sentir o que está por vir.
Maestro Nicochina
Quinze minutos para começar o espetáculo a maquiagem é feita. Nicochina toca mais músicas; o público já está mais próximo e conhecemos algumas pessoas pelo nome, apelido; histórias contadas pelo público podem ser jogadas em cena; piadas e elementos chaves do espetáculo são reforçados; mais farra, o espetáculo já está começando, não é para haver ruptura, ou podemos perder o público.
Às vezes o esquenta acontece num tempo muito curto, ou não acontece. Nessas situações é mais comum encontrar dificuldades para conduzir o espetáculo com o ritmo e intensidade que desejamos; e há casos em que o lugar, o público, são extremamente favoráveis ao que fazemos.

Esse esquenta, para além da sua função em cada apresentação que fazemos, tem um papel importante em nossa criação artística. É quando se brinca mais com o improviso, com a piada, apresenta-se um número novo; funciona para nós como um campo de experimentações e descobertas da rua, nosso foco.

Esse tipo de pesquisa empírica, vivencial, sempre foi característica na concepção dos nossos trabalhos. Nos primeiros anos fomos fortemente influenciados pelos circos pequenos que circulavam pela região de Presidente Prudente. Fizemos muitas visitas a esses circos para assistir espetáculos e conversar. Neles encontramos uma referência que é muito presente em nossos trabalhos, que são os palhaços verborrágicos, impudicos, tipo cômico que converge para outra referência fundamental em nosso trabalho, que são os artistas populares de roda de rua com seu humor escrachado e forma horizontal de se relacionar e brincar com o público.
Foto de Talita Galindo

Nosso primeiro espetáculo “Hoje Tem Espetáculo!” (2001) foi criado a partir dessa referência desses circos pequenos, numa proposta de levar gags e reprises de circos tradicionais para um jogo direto na roda de rua com o público.

A aproximação desses circos também aconteceu com o aprendizado de técnicas circenses (malabarismo, perna de pau, acrobacias), participando de oficinas e realizando treinamentos coletivos. Hoje essas técnicas são muito utilizadas na criação de nossos trabalhos artísticos, e estiveram muito presentes na criação do nosso segundo espetáculo “Saltimbembe Mambembancos” (2005), que também apresenta uma gag tradicional e outras criações nossas a partir do universo circense.

Em nossa criação artística realizamos muitas experimentações com o público e em diferentes contextos. Isso acontece muito em alguns trabalhos que somos solicitados, geralmente em Presidente Prudente e outras cidades da região; eventos diversos que sempre encaramos como oportunidade de experimentar, aprender, testando coisas que depois podem vir a ser parte de um novo trabalho artístico. Hoje temos uma intervenção itinerante, “Rabo de Foguete”, em que vamos andando, parando e brincando; uma intervenção artística que surgiu nessas experiências diversas, onde não éramos chamados para apresentar um espetáculo mas brincar e interagir com o público. Nossa montagem atual, do espetáculo Super Tosco, tem essa referência muito forte, acrescidos de uma musicalização com participação mais ampla de todo o grupo na sua execução cênica.

Classificamos nossa pesquisa como utilitarista, no sentido de que aponta sempre para um uso específico de técnicas na concepção de cenas e números, e não para um aprendizado global das linguagens que trabalhamos.

Hoje o processo artístico do grupo também se efetiva numa rotina de encontros de ensaio (muitas vezes irregular por conta da circulação e outros trabalhos) que incluem, variavelmente: exercícios de força; jogo de Ogrobol (jogo inventado por nós e que utilizamos como exercício); prática de técnicas circenses como malabarismo e acrobacias de solo; estudo e treino musical individual e coletivo; observação de vídeos; passagem de cenas e espetáculos; discussão de concepção de cenas; eventualmente práticas e discussões com outros grupos e artistas em colaboração com nosso processo artístico. Nesse processo a participação de cada integrante do grupo se dá de maneira diferente no desenvolvimento do conteúdo geral.
Foto de Talita Galindo
O trabalho de criação musical e sonoplastia de Robson Toma tem papel importante no processo de criação artística do Rosa dos Ventos. Sua inserção no grupo aconteceu junto com uma banda, que durante um período acompanhou as apresentações musicalizando e fazendo sonoplastia. Os espetáculos já existiam, mas assim ganharam música e recursos de sonoplastia ao vivo, num encontro de resultado surpreendente para o grupo. Mas um dia os outros músicos da banda saíram para compra cigarro e nunca mais voltaram, permanecendo apenas Robson, que deu continuidade a ideia nascida, tornando-se a partir daí o homem banda... desenvolvendo uma forma muito particular e espetacular de fazer música e sonoplastia ao vivo em nossas apresentações com uso simultâneo de bateria, guitarra, teclado e outros instrumentos acoplados. Hoje esse trabalho é uma das bases na criação do nosso espetáculo Super Tosco, que incorpora novos instrumentos (sanfona, escaleta, trompete e sax) executados pelos outros integrantes do grupo.

A montagem do nosso último espetáculo “A Farsa do Advogado Pathelin” (2009) ajudou a definir no grupo uma metodologia/rotina de ensaios que agora compreende nossa criação artística. Esse processo dá-se, geralmente, com a passagem de treinos técnicos fragmentados para a passagem geral de cenas e números, um exercício repetitivo, mas criativo.

Com a Farsa também aprimoramos nossa pesquisa estética de rua desenvolvendo uma linguagem dramatúrgica aberta a interferência direta do público e recheada de piadas e brincadeiras nossas que ajudam a contar a história. Esse foi o nosso primeiro e único trabalho com uma direção, nos outros (e no atual) a direção foi coletiva.
Foto de Talita Galindo
Uma particularidade dessa montagem é que nela encontramos um elemento provocador e novo para o grupo, que é um texto dramatúrgico. Até então a criação dos nossos trabalhos sempre foi livre com roteiros, cenas, quadros e gags tradicionais de circo e criadas por nós que podiam ser modificadas a cada instante em seu conteúdo geral. A proposta que chegou com o diretor Roberto Rosa foi a de estudar uma dramaturgia, um texto e sua encenação, isto é, contar uma história predefinida, mas a partir da nossa linguagem (livre) e personagens cômicos. Enfrentando e resistindo a vários textos, finalmente chegamos ao gênero farsa e a história do advogado Pathelin. A partir daí o processo foi longo e delicado; sentíamos-nos engessados com o texto, com a história que deveria ser contada; o texto chegou como uma provocação à nossa linguagem e forma de criação.

O processo desse espetáculo caminhou no sentido de fundir a linguagem circense do grupo ao texto, utilizando técnicas circenses e palhaçarias para contar a história. Buscamos formas de atualizar essa história, que tem mais de 500 anos, fazendo uma adaptação do texto ao contexto da rua de hoje, levando uma linguagem que nela aprendemos de comunicar diretamente com o público, abrindo a história para os improvisos e participação do público e fugindo assim da forma teatral mais tradicional. Não deixamos de lado a ideia de que o público precisa saber que ali existe espaço para ele participar, questionar e até entrar em cena, na história. A história é a rua.
Foto de Alissom Ginadaio
Hoje, seguimos dois caminhos, significativos na história do Rosa dos Ventos, o de continuar a criação livre de espetáculos cômicos, com a liberdade das rodas populares de rua, apresentando habilidades circenses, musicais, entre outras e; o caminho da dramaturgia, ao nosso modo, para contar histórias, sem abrir mão dessa comunicação própria da rua. Na linha desse primeiro caminho estamos vivendo nossa criação atual do espetáculo Super Tosco, e em seguida pretendemos fazer novamente uma montagem a partir de algum texto dramatúrgico.

A montagem do Super Toscos acontece, muito irregularmente, desde 2011, a partir de um primeiro número de acrobacia de formação coletiva e segue com a criação de outros números e a busca de um argumento que perpasse todo o espetáculo e seja pano de fundo para tudo o que é apresentando. A montagem avançou no aprimoramento técnico de alguns números e ampliação de repertório associado a criação de cenas movas pensadas a partir de trocas e orientações com colaboradores amigos em encontros eventuais. Como já dissemos, vivemos a montagem desse espetáculo muito baseado nas performances e interações artísticas que construímos praticando com o público em espaços alternativos e que compõem hoje nosso repertório para esse tipo de trabalho. O desafio que se apresenta agora é o de alinhavar tudo com soluções trabalhadas em ensaios, com elementos do universo cômico dos circos pequenos e rodas populares de rua, buscando aí uma unidade para o espetáculo.

GRUPO ROSA DOS VENTOS
Artigo escrito pelos integrantes do Grupo Rosa dos Ventos em outubro de 2014 para a Revista Rebento


Foto de Adernil de Souza

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